segunda-feira, março 20, 2006

Olá Pai. Pai não, amigo.

Olhei agora para as horas e reparei que o teu dia já passou. Não faz mal. As palavras, escritas ou faladas, não têm hora marcada.

Não me esqueci de ti hoje. Afinal estive contigo, abracei-te, beijei-te e ralhei-te por seres tão teimoso. Mostrei-te que não deixei passar a data em branco, apesar de não te ter oferecido nada. Como tu sempre me fizeste ver, a vida está cara. E tu sabes como ela é difícil. Desculpa, mas sei que compreendes.

Olha, há muito que quero dizer-te algumas coisas. A verdade é que não sei como fazê-lo. Não sei qual a melhor altura. Nem sequer sei quais as palavras certas. Daí estar a esconder-me por aqui. Talvez por saber que, provavelmente, estou protegido.

Gostava de ser capaz de olhar-te nos olhos, sem me largar a chorar, e dizer-te o quanto te respeito. Que não sabes, nem sonhas, o quão importante foste e és para mim. Gajo, és grande.

Lembraste quando era mais pequenino e ia, com a mãe, ter contigo ao trabalho? Ou então, quando íamos para a praia, porque tu não pagavas o autocarro e eu nem sequer tinha idade para me cobrarem meio bilhete? Era muita fixe.

Lembrei-me agora de quando ficávamos, na janela da cozinha, da casa antiga, a ver quem passava e tu dizias assim: “Olha as meninas! Assobia lá”. Foi aí que me ensinaste a fazer ‘fiuu fiuuuu’. Ganda maluco.

Isso foi na altura em que eu era muita pequenino. Depois cresci. Crescemos os dois. Sei que tinha a capacidade de te tirar do sério. Desculpa Pai. Portei-me muita mal.

Bom e aquela vez em que eu e o meu amigo demorámos um bom par de horas para chegar a casa, vindos da catequese, que era já ali ao lado, porque nos lembrámos de ir apanhar caracóis. Tu, preocupado, foste logo à nossa procura. Só não me consigo recordar se, na altura, apanhei das boas. Devo ter. Se em outras situações apanhei, por que razão nessa não haveria de ter apanhado. Mas lembro-me de estar no terraço, mais o meu amigo, a tentar descobrir qual era o caracol mais rápido.

Por falar em terraço. E quando íamos os três, eu, tu e a mãe, lavá-lo com a mangueira. Isso é que eu gostava de chapinhar na água. Nesse aspecto, que ninguém diga o contrário. Se gosto tanto de praia e do mar, a responsabilidade só pode ser tua.

Tenho tantas memórias tuas, de quando eu era puto. Nem tens ideia. De coisas boas e coisas boas, apesar de, na altura, serem bem más para mim.

Há um momento, porém, que nunca esquecerei. Recordo-o como se fosse ontem Pai. De certeza que também te lembras: foi a última vez que me bateste. Abençoada chapada aquela que me deste. Foi por causa do carro. O puto queria ir de carrinho para a Universidade e tu achavas que eu não era capaz. Tinha a carta há pouco tempo.

Chegaste do trabalho e eu já estava na cama. Entraste no quarto, para me cumprimentar, e eu mandei-te ir embora para onde tinhas estado. Não te dei os dois beijinhos com que ainda hoje te saúdo. Ainda bem que te passaste e puxaste essa mãozorra atrás.

Passado um bocado fui ter contigo à cozinha, acho que sem chorar, onde tu tinhas começado a comer e não acabaste. ‘Quem é que tu pensas que és? Não preciso de ti para nada. Queres bater, bate agora. Anda, anda lá. Deves pensar que o teu filho ainda tem 6 anos. O teu filho cresceu. Não preciso de ti. Etc, etc, etc e etc’. Como é que fui capaz de te dizer tudo isto. A mãe não estava a perceber nada. ‘Não te quero ver mais à minha frente’. Virei costas e fui enfiar-me no quarto. Tu fizeste o mesmo. Aí sim, chorei. Tu também choraste, porque a mãe contou-me enquanto tentava apaziguar os ânimos.

Fui ter contigo, após muita insistência da mãe. Ou foste tu ao meu. Não importa. Sei que nos agarrámos como nunca antes o tínhamos feito. Foi tão bom Pai. Abençoado dia. Foi desde então que nunca mais nos olhámos como Pai e filho. Claro que és o meu paizão, mas agradeço a Deus por me ter apresentado um Amigo tão grande. Tinha mais coisas para te dizer, mas deixo para outra altura.

Pai, é verdade, tu não és grande. És enorme.


"Na verdade, poucos filhos são semelhantes ao pai; a maioria é inferior, poucos são melhores que ele" - H.